19 Abr 2009 @ 5:02 PM 

Não deve ter sido programado para ser desta forma, mas no início desta madrugada houve uma coincidência interessante na programação do Canal Odisseia: primeiramente eles transmitiram um documentário com o título “Bandos Criminosos do Mundo”, originalmente Ross Kemp on Gangs. O episódio tratava dos grupos de “skinheads” Neo-Nazis de Moscovo.

Logo a seguir, mostraram dois episódios, de cerca de 30 minutos, sobre o cinema norte-americano. A série de 10 episódios chama-se “Das Séries B aos Filmes de Culto”, da qual foram mostrados os episódios sobre os géneros Western e Melodrama.

Esta última série tem por objetivo mostrar a História do cinema como agente promotor dos valores sociais, nomeadamente na sociedade norte-americana. A cada episódio é apresentado um género, desde sua origem até os nossos dias, assinalando as modificações pelas quais passam a realização das histórias de acordo com a própria evolução de nossa sociedade, para além de seus principais intervenientes.

Na definição do género Western, logo no início do documentário, a narração bem-humorada diz que é muito simples de se reconhecer um filme deste género: “Primeiro procurem o cowboy. É ele o herói. A história é muitas vezes a mesma: o cowboy vagueia pelas planícies para vingar o assassino … ( e covarde (?) Não compreendo o que ela diz) de sua família ou para encontrar a esposa que foi levada pelos índios. Por vezes o cowboy tem um profundo sentido de justiça e neste caso desempenha o papel de xerife”. Após a definição do herói, necessariamente, vem a do vilão: “Os maus da fita são índios ou mexicanos enquanto que o cowboy é sempre branco”.

Pouco antes, contando a História do herói, informam que são imigrantes europeus que fugiam da pobreza, da guerra e, por vezes, da justiça em seus países de origem, pessoas estas que ao não encontrar lugar nas já bem organizadas cidades do leste norte-americano, punham-se na estrada rumo a oeste (“west” em inglês, daí o nome Western) em busca da vida.

O sub-género “Western” esta em vias de extinção, sendo que neste momento estamos passando, inclusive, (como é nosso hábito e será motivo de futuro estudo) por um processo de destruição da imagem deste tipo de herói, que de macho a prova de qualquer garrafa de whisky, briga ou duelo, primeiramente perdeu um símbolo de sua masculinidade, deixou de fumar, e depois o que restava dela, pois passou a ser homosexual. Mas estas mesmas histórias são contadas até hoje em milhares de outros filmes por todo o mundo, noutros sub-géneros e isto formata e instrui toda uma sociedade global. São pelo menos 100 anos contando a mesma história do “herói” vingador que mata com facilidade os “inimigos” de outra raça que lhe privam da donzela ou de um ente querido.

O factor que provoca a coincidência ocorreu no documentário anterior. Trata-se também de uma série de documentários, premiado com o BAFTA de melhor série fatual no Reino Unido em 2007,  que aborda a questão dos gangs, e que levou o ator, autor e jornalista Ross Kemp, a diversas partes do mundo para documentar a violência que envolve estes agentes de nossa sociedade.

O episódio em questão leva-o a Moscovo e foi o segundo da segunda série de episódios, que começara, na primeira série, no meu natal Rio de Janeiro. Neste episódio, Kemp vai atrás de grupos Neo-Nazis e descobre quem está por trás de recentes ataques racistas, que, segundo ele e não só, ocorrem diariamente. Em sua investigação chega mesmo a ir a um sítio secreto da forte organização (que tem braços inclusive dentro do parlamento russo) onde treinavam e abrigavam alguns dos alegados skinheads assassinos.

É aqui que se dá a coincidência: ao entrevistar um dos membros sénior de um grupo skinhead, tenta descobrir primeiramente quem é o inimigo e depois porque ele assume aquele papel, numa conversa assustadoramente honesta de parte a parte. Nem precisou perguntar quem é o inimigo pois ao querer saber sobre um ferimento recente (ainda com os pontos) que o entrevistado tinha no joelho e sobre o tipo de combate no qual se envolvia, teve sempre como resposta a culpa do inimigo, os imigrantes. Diz o entrevistado: “Se matarmos 1, são menos 1.000 os imigrantes que vem para cá”.

O entrevistado, assumindo o papel de herói vingador que vive em perigosos combates contra o inimigo imigrante, diz que se tornou racista depois de rebeldes tchetchenos terem supostamente destruído vários blocos de apartamentos em 1999. “No primeiro bloco de apartamentos vivia uma rapariga (a donzela) que eu conhecia (*) e eu disse – “Vamos matar tchetchenos (os índios ou mexicanos).” – Peguei numa faca e decidi que ia matar um tchetcheno”.

Narra ainda que depois desta decisão, numa linearidade cinematográfica, quando estava a caminho do mercado para consumar o que decidira, encontrou um outro grupo, armados de bastões, que o viram com uma faca e perceberam mutuamente a comunhão das intenções. Convidaram-lhe então para ir com eles. “Fomos até ao mercado e punimos aqueles tchetchenos pelo crime cometido pelos seus compatriotas”.

E cá está a coincidência, seja na identificação do inimigo, seja na atitude tomada em relação a ele, em tudo concordante com a posição expressa pelos filmes de cowboy, onde são mortos muitos índios por terem levado uma mulher. A lógica formulada é simétrica e se reproduz em diversas outras situações.

Num monólogo consternado interpretado pelo John Wayne, destacado na introdução da série sobre Western, vemos o seu personagem dizer o seguinte a cerca de sua mulher: “Quando estava a morrer, as suas últimas palavras foram: Encontra-os DJ. E os estou a procurar desde então. Isto não é somente o meu trabalho, mas é parte de minha vida”. Façamos um mashup nos discursos. Poderia resultar numa coisa mais ou menos assim:

– No primeiro bloco de apartamentos vivia uma rapariga que eu conhecia. Quando estava a morrer, as suas últimas palavras foram: Encontra-os SH. E eu disse – “Vamos matar tchetchenos.” – Peguei numa faca e decidi que ia matar um tchetcheno. E os estou a procurar desde então. Isto não é somente o meu trabalho, mas é parte de minha vida.

Parece que resulta perfeitamente. Vejo até mesmo a imagem de um com a voz de outro num filme no YouTube.

Alguns destes homens são liderados por um senhor que diz ter pretensões políticas objetivas, tem planos concretos para o que fará quando assumir o poder na Russia, tem apoiantes, muitos a conferir pelo dinheiro gasto na qualidade de todo o equipamento e instalações mostrados ao longo do documentário, tendo inclusive braço político que representa as suas ideias na Duma, segundo Kemp, retiradas do Mein Kampf.

Mas uma outra coincidência, maior e que mais me perturba, é a de que no esteio de uma profunda crise económica em tudo semelhante a que passamos agora, embora a origem seja mais ou menos diferente (lá provocada pelos industriais, aqui pelo sistema financeiro, elites, cada um em seu tempo, no âmbito do Liberalismo), um senhor com estas ideias, talvez não o primeiro, mas certamente o mais famoso deles, chegou ao poder pelo voto dos seus apoiantes.

Quero com isto afirmar que estamos caminhando para o mesmo destino? Absolutamente não, mas é muito importante lembrar-mo-nos sempre de nossa História recente.

Principalmente pelo facto de que hoje há uma diferença fundamental em relação ao passado: os meios de comunicação que propagam o formato do indivíduo social definido e promovido nos filmes, chega, muitas vezes de graça, a um número assustadoramente maior de pessoas do que chegou no passado. E pelos mesmos meios, a capacidade de organização e propaganda de qualquer tipo de grupo, está neste momento extremamente mais facilitada.

O formato do “heroi” está perfeitamente bem definido e enraizado. Falaremos depois dos “vilões” e das “vítimas”, definidas estas no segundo episódio na série de filmes que tratava dos Melodramas. Todos participam do mesmo filme.

Posted By: Edgard Costa
Last Edit: 19 Abr 2009 @ 09:16 PM

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Categories: Pensando alto


 

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