21 Jun 2010 @ 7:50 AM 

Ronaldo Bastos lá na cozinha de casaDa obra artística do ser humano o que mais admiro é quando ele consegue resumir com simplicidade, e estética, aspectos de nossa vida, por mais complexos que eles sejam. A imagem mais forte que exemplifica o que estou a tentar dizer, é a imagem da cabeça de um touro, e de tudo o que isto representa na alma do povo de Espanha, formada com o assento e o guidão de uma bicicleta, por Pablo Picasso.

Isto para dizer que no último sábado (19/06/2010) estive a conversa com uma dessas pessoas que conseguem reunir, no caso em palavras, ideias que abrem espaço na imaginação à diversas imagens. E com poucas palavras. Um génio que consegue no espaço de uma letra de música falar de aspectos primários da alma de todos os homens com simplicidade e beleza estética, rítmica e métrica.

Mas o melhor que tudo: estive a conversa com meu amigo e compadre Ronaldo Bastos (na foto saindo de dentro da cabeça de meu filho mais velho, do qual é padrinho, fotografado pelo filho mais novo), na mesa da cozinha de minha casa, o que para além de tudo, é uma honra incomensurável. Falamos muito, sobre muitas coisas, tentando fazer o pouco tempo esticar-se, relativizando-o em função da quantidade de coisas que haviam para serem ditas depois de décadas sem estarmos um frente ao outro.

Falamos de música, da História recente da Música Popular Brasileira, da qual ele é um célebre personagem, falamos de arte, de artistas, da Nana Caymmi, do Cafi, dos Rolling Stones e de outras pedras rolando, de Galileu, de Joaquin Rodrigo e do Federico Garcia Lorca (sim Ronaldo, tens razão. O nome do homem era Federico. Minha velha cabeça já me trai), estes dois últimos que emprestaram os nomes aos meus filhos.

Mas também falamos de religião, ou melhor de crenças religiosas, como não poderia deixar de ser, não fosse esta uma conversa entre seres humanos. E eu lhe contei como a minha religiosidade se manifesta.

Contei-lhe que tenho um ritual sincrético que pratico a cada vez que me ponho em viagem (e quem me conhece sabe que isto ocorre com muita frequência!). Antes de por o meu pé em qualquer estrada eu recito uma oração, por vezes silenciosamente, mas por outras em alto e bom som. Canto os versos de uma prece genérica que descreve uma imagem clara daquilo que sei que acontecerá na volta da viagem, que naquele momento começo a fazer. É que aprendi, ao longo dos anos, e depois de muitas viagens, que alguma coisa sempre se modifica no homem que viaja. Mesmo que voltemos para o ponto de partida, nunca somos mais aquele que partiu. Trazemos carregados dentro de nós, no mínimo, mais alguma memória pictográfica que toda a viagem proporciona.

Mas ela, a viagem, sempre nos acrescenta mais que isto. Ela mostra-nos outras pessoas, outras ideias, outras formas de ver aquilo que antes só conseguíamos ver com os nossos olhos, mostra-nos outros sons e cheiros. Mostra-nos paisagens que se formam (e se transformam) infinitamente a partir de poucos elementos naturais, como a água, a terra e a própria vida, que se misturam criativa e infinitamente, como as 7 notas musicais, numa sinfonia de imagens e cores que, as mais belas, guardamos para sempre conosco.

Sabendo disso tudo, e de todas estas possibilidades, o jovem Ronaldo um dia colocou na boca do jovem Milton Nascimento as palavras de minha prece. Canto eu antes de cada viagem, e já há cerca de 35 anos:

“Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol

Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes amanhã

Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol”

Pois é… Simples não é? Mas para mim, quando me ponho a viajar e a recolher mais informações sobre a vida, isso diz tudo o que preciso saber antes de ir. Diz-me que quando eu voltar nada será como antes. E isto me impele a ir de novo e mais uma vez, e mais outra vez e assim por diante, numa viagem que comecei em 1984, quando saí do Rio de Janeiro e fui para Curitiba. Daí para Portugal, onde termino a criação da prole antes de seguir viagem, mas que serve de base para curtas viagens para todos os lados na Europa, quase sempre de carro, para por o meu pé em estradas e mais estradas, até quando isto for possível, para ver ao vivo coisas como esta:

Picasso

E conhecer pessoas, sabores e cheiros. Modificar-me enfim.

Obrigado Ronaldo, pela visita e pela composição de grande parte da trilha sonora de minha vida.

Posted By: Edgard Costa
Last Edit: 22 Jun 2010 @ 07:46 AM

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